Se eu ainda alimentava alguma dúvida sobre a relação entre fé e consumo, a tarde de 10 de dezembro de 2011 dirimiu por completo minhas questões sobre o assunto. Fé tornou-se objeto de consumo ou, pior, incentivo ao consumo!
A Rede Globo de Televisão (talvez movida pela concorrência com a Record do Bispo Macedo) e alguns artistas do “mercado gospel” se uniram no festival Promessas, evento de música religiosa evangélica para um grande público no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.
A música gospel fatura bilhões e tem, cada dia mais, chamado à atenção mídias, gravadoras, políticos e investidores dispostos a mergulhar nesse mar cheio de oportunidades. Pesquisas recentes revelam que esse mercado é um dos mais rentáveis no país (movimenta R$ 1,5 bilhão por ano e é o único segmento fonográfico que cresce em venda de discos no País). Segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), o estilo está presente entre os 20 CDs mais vendidos no Brasil.
A música saiu dos templos e invadiu os mercados. Com ela, surgiram artistas, empresários, contratos e tudo que demanda um empreendimento artístico e cultural dessa envergadura.
Está claro para mim que a fé tem um papel social importante e, acima de tudo, relevante (impactante). O discurso da fé não é um entre os demais. É um modo de ver a realidade que molda os demais discursos e, como tal, forma opinião e determina decisões e comportamentos.
Meu conflito está no fato de que a multidão de “fãs” da música gospel não se diferencia do restante da população e, por uma questão de coerência com os princípios que as próprias letras alardeiam, não “fazem diferença” na sociedade.
Continuamos um país com péssima distribuição de renda, de altos índices de analfabetismo, subemprego e corrupção. A representação evangélica nas esferas de governo e legislatura não são em nada melhor ou diferente da política pequena e corrupta que domina no país.
É fato que as igrejas cresceram muito e há hoje uma população consideravelmente grande daqueles que se identificam como “evangélicos”. Mas é fato também que isso não mudou em nada a face da nação, como requeria o Evangelho de Jesus ao nos exortar a sermos “sal da terra e luz no mundo”.
Por outro lado, fico sempre a me perguntar sobre questões teológicas. Primeiro, e mais óbvia, é a observação sobre o conteúdo das letras e a qualidade das músicas. Nada que se aproxime da boa música popular e da poesia brasileira. Há muito dinheiro envolvido e muita riqueza dispensada em tecnologia, marketing e contratos, mas muito pouca qualidade musical de fato. A fé cristã dispõe de um depósito generosamente grande de tradição e reflexão, mas as músicas das rádios e televisões são impressionantemente pálidas, iguais e de baixa qualidade.
Além disso, banalizam o nome de Deus. Como já afirmei em outras oportunidades, não há mandamento contra o qual as religiões mais tropeçam do que o segundo deles – “não usarás o nome do Senhor teu Deus em vão”; destaque especial deve ser feito para as rádios e artistas evangélicos. Usam e abusam do nome de Deus como se esse não fizesse a menor diferença. Virou entretenimento e música de recepção. Sairam dos templos, onde funcionavam como instrumento de louvor, e assumiram as hits parades, onde o que vale é a efemeridade da mudança e do ineditismo.
Com cachês milionários – e, diga-se, imorais – os artistas gospel sustentam e reforçam cada dia mais as máximas da teologia da properidade; visão de mundo baseada na ideia de que os abençoados são, necessariamente, bem sucedidos e prósperos. A fé, vista dessa forma, não passa de uma senha para acesso ao mundo do consumo e da felicidade.
Quem antes buscava na igreja um conforto especial para seus dramas e tristezas e, além disso, comprometia-se, pela fé, numa ação convertedora da maldade desse nosso mundo, agora vai ao shopping (com roupa de missa) e, lá, compra um CD do último artista gospel, namora um celular novo na vitrine e, por fim, participa de uma eucaristia à prosperidade no McDonald`s.
Triste que a Igreja tenha saído da marginalidade assim, se assimilando a esse mundo e dele fazendo parte. O Apóstolo Paulo fora esquecido porque suas palavras eram duras demais: “não vos conformeis com este mundo, antes transformai-o pela renovação da vossa mente” (Rm 12,1).
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